Hugo Cruz, o baleiro do Cine Santa Tereza - Santa Tereza Tem
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Hugo Cruz, o baleiro do Cine Santa Tereza

Hugo Cruz, o baleiro do Cine Santa Tereza, o menino que vendia balas  na década de 1950, volta ao cinema e nos conta interessantes histórias sobre o bairro

O Cine Santa Tereza, revitalizado e com previsão de abrir as portas no final de abril, coleciona muitas histórias, desde a inauguração, em 20 de maio de 1944, quando exibiu o filme O Conde de Monte Cristo, com Robert Donat e Elisa Land. O senhor Hugo Cruz, hoje com 76 anos, lembra com alegria do período em que trabalhou, vendendo balas no cinema, dos 11 aos 13 anos de idade, entre 1949 e 1951.

Hugo Cruz no Cine Santa Tereza

Quem assistiu ao filme Cinema Paradiso, de 1988, dirigido por Giuseppe Tornatore, pode notar semelhança da história do menino Hugo com a do protagonista, o garoto Toto, interpretado por Salvatore Cascio. Foi com a experiência no Cine Santa Tereza que o então baleiro Hugo criou fascínio pelo cinema.

Hugo morava em Santa Tereza com a família, (Rua Mármore com Conselheiro Rocha), perto de uma mangueira, hoje quase centenária, onde ele e os irmãos, colhiam e se deliciavam com as mangas. As crianças cresceram e a mangueira continua lá, firme.

Hugo Cruz na porta do cinema

O mais velho dos cinco irmãos, começou a trabalhar cedo, como baleiro para ajudar em casa. “Por ser menor de idade, precisei de licença do Ministério do Trabalho. O dinheiro não era muito, mas dava para minha mãe fazer uma boa feira”, recorda.

Sempre que havia sessão, ele colocava a bandeja de balas no pescoço e percorria as filas da bilheteria. Vendia muito e quase sempre precisava repor a mercadoria. “Logo que o público entrava na sala, eu ia atrás para vender nas cadeiras, enquanto as luzes estavam acesas, antes de começar o filme. Então eu voltava para a porta e atendia aqueles que chegavam atrasados. O funcionário Bracarense, porteiro e lanterninha, se tornou meu amigo e me fazia um sinal discreto, para que eu entrasse na frente dele. E assim conheci muitos filmes daquela época!”, conta Hugo, com sorriso grande.

Mas havia algo que ele não gostava: “O problema é que sempre faltava alguma bala na hora do acerto e o patrão descontava na minha comissão. Isso porque eu errava o troco ou, distraído, pegava uma balinha e punha na boca”, explica, com ar de travessura. Além do baleiro e do pipoqueiro, no cinema havia o padeiro. “O padeiro trazia o pão da padaria Seleta em um carrinho. Quase todo mundo comprava pão depois da sessão e ia pra casa com o pão debaixo do braço”, descreve Hugo.

Depois de parar de vender balas e seguir por outro ramo profissional, Hugo continuou a frequentar o cinema, mas como espectador. Então, ele conta que além de não perder nenhuma estreia, aproveitava para paquerar. A moda na época eram os footings na Duque de Caxias, em que as moças davam voltas ao redor da praça, enquanto os rapazes as observavam de longe. “Só podia olhar, porque se chegasse perto, tinha que namorar”, lembra.

Mas um dia ele não resistiu e chamou uma moça pra ir ao cinema. Era Lucília, sua vizinha de frente. De sessão em sessão, o namoro firmou e se casaram. Tiveram três filhos. Atualmente o casal reside no bairro Coração Eucarístico, mas ele volta sempre a Santa Tereza para visitar amigos e familiares, inclusive uma das filhas, a jornalista Cristine Cruz.

Retorno ao Cine Santa Tereza

hugo rindo

José Ricardo Costa, coordenador do Museu da Imagem e do Som (MIS), que é o órgão responsável pelo cinema, abriu as portas para seu Hugo conhecer o prédio reformado do cinema.

Apesar da emoção de retornar ao espaço, onde há muitos anos não entrava, seu Hugo estranhou: “Está bonito, mas tudo diferente. As portas eram sanfonadas, havia dois banheiros no fundo, não tinha escada e muito menos corrimão. Havia sim uma área mais alta, o balcão, que era tipo um mezanino. Esse era o lugar preferido pelos casais de namorados. Era beijo pra cá e pra lá, e o lanterninha tinha trabalho”, relembra ele.

Ainda sobre o balcão, Hugo recorda um caso pitoresco. “Havia um rapaz, o Marcinho, não recordo sobrenome. Que Deus o tenha, porque já morreu, só ficava no balcão. Certa vez, arrumou uma briga, porque ele estava com uma moça comprometida. A confusão foi tanta que proibiram o Marcinho de entrar no cinema” conta dando uma sonora risada.

Uma característica marcante da época, que ele destaca, é a forma como as pessoas se vestiam na década de 1950 para irem ao cinema. “As mulheres vestiam saiotes lá embaixo, com anáguas, muito elegantes. Os jovens vestiam calça de tergal, que não amarrota e não perde o vinco, mas era de resíduo de petróleo e esquentava demais. Depois é que vieram as calças americanas faroeste, que hoje são chamadas de jeans. Todo mundo vinha de sapato e bem arrumado, não tinha esse negócio de tênis, chinelo e bermuda”, relembra.

Filmes que marcaram época

Hugo Cruz fala com entusiamo sobre alguns dos filmes a que assistiu como baleiro e frequentador do Cine Santa Tereza: “Um que arrebentou a boca do balão foi O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, que assisti duas vezes! Também fizeram muito sucesso as estreias de Bem Hur (1959), de William Wyler, e do Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte. Um filme que me impressionou muito foi Veneno Lento. E eu era muito fã de séries como Shazan, Bonanza, Cantinflas.”

O Conde de Monte Cristo, filme que inaugurou o cinema

Puxando pela memória, ele recorda e cita outros, como E o vento levou, que com quase 4h de duração foi exibido em duas sessões no Cine Santa Tereza, a primeira parte em uma noite e a segunda, na noite seguinte.  Casa Blanca; filmes com o ator Errol Flyn, como Robin Hood; A um passo da eternidade. “Nos domingos, às 10h, tinha matiné para a meninada, que exibia principalmente desenhos da Disney. Chega de filme ou quer mais?”, desafia ele, exibindo a memória afiada.

Para Hugo Cruz, o que resultou no fechamento de praticamente todas as salas de cinema da cidade foi a popularização da televisão. “As pessoas passaram a trocar o cinema pela TV e aí veio a decadência. “Eu não troquei. Na TV, só gosto de ver jornal e assim mesmo o da Bandeirantes e da Record, da Globo não. Hoje, filme pra mim é terapia. Começo a assistir e durmo.  Nos meus 76 anos, gosto mesmo é de ver desenho”, brinca ele.

Cleide, a filha que o acompanhou durante a visita ao Cine e a entrevista exclusiva ao site Santa Tereza Tem, conta que o pai coleciona DVDs, que estão guardados em várias caixas, nos quais se destacam os clássicos das décadas de 1950 e 60. “Ele assiste várias vezes aqueles que o marcaram”, revela Cleide, emocionada e orgulhosa do pai.

*Seu Hugo Cruz faleceu em 09 de outubro de 2022.

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