117 anos do poeta e profeta - Santa Tereza Tem
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117 anos do poeta e profeta

117 anos do poeta Carlos Drummond Andrade

Dia 31 de outubro, o grande poeta mineiro de Itabira, estaria completando 117 anos. Ele sai de Minas, foi para o Rio de Janeiro, mas Minas nunca saiu dele. E o poeta, apesar de não ser profeta previu em seus escritos as depredação provocada pela mineração e os estragos do Rio Doce. Para homenageá-lo nada melhor que publicar alguns dos seus poemas, especialmente os que mostram a sua alma mineira.

Imagem do acervo de Genin Guerra

No poema abaixo parece que ele já sabia o que iria acontecer em Mariana e Brumadinho:

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
A dívida interna
A dívida externa
A dívida eterna
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?

Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Já em Triste Horizonte ela fala da Serra do Curral já sendo destruída.

Triste Horizonte

“Por que não vais a Belo Horizonte? a saudade cicia e continua, branda: Volta lá.
Tudo é belo e cantante na coleção de perfumes das avenidas que levam ao amor, nos espelhos de luz e penumbra onde se projetam os puros jogos de viver. Anda! Volta lá, volta já.
E eu respondo, carrancudo: Não.
Não voltarei para ver o que não merece ser visto, o que merece ser esquecido, se revogado não pode ser.

Não o passado cor-de-cores fantásticas, Belo Horizonte sorrindo púber e núbil sensual sem malícia, lugar de ler os clássicos e amar as artes novas, lugar muito especial pela graça do clima e pelo gosto, que não tem preço, de falar mal do Governo no lendário Bar do Ponto.
Cidade aberta aos estudantes do mundo inteiro, inclusive Alagoas, “maravilha de milhares de brilhos vidrilhos”mariodeandrademente celebrada.

Não, Mário, Belo Horizonte não era uma tolice como as outras. Era uma provinciana saudável, de carnes leves pesseguíneas. Era um remanso, era um remansopara fugir às partes agitadas do Brasil, sorrindo do Rio de Janeiro e de São Paulo: tão prafrentex, as duas! e nós lá: macio-amesendados na calma e na verde brisa irônica…

Esquecer, quero esquecer é a brutal Belo Horizonte que se empavona sobre o corpo crucificado da primeira. Quero não saber da traição de seus santos. Eles a protegiam, agora protegem-se a si mesmos. São José, no centro mesmo da cidade, explora estacionamento de automóveis. São José dendroclasta não deixa de pé sequer um pé-de-pau onde amarrar o burrinho numa parada no caminho do Egito. São José vai entrar feio no comércio de imóveis, vendendo seus jardins reservados a Deus. São Pedro instala supermercado. Nossa Senhora das Dores, amizade da gente na Floresta, (vi crescer sua igreja à sombra do Padre Artur) abre caderneta de poupança, lojas de acessórios para carros, papelaria, aviário, pães-de-queijo

Terão endoidecido esses meus santos e a dolorida mãe de Deus? Ou foi em nome deles que pastores deixam de pastorear para faturar? Não escutem a voz de Jeremias (e é o Senhor que fala por sua boca de vergasta): “Eu vos introduzi numa terra fértil, e depois de lá entrardes a profanastes. Ai dos pastores que perdem e despedaçam o rebanho da minha pastagem! Eis que os visitarei para castigar a esperteza de seus desígnios”.

Fujo da ignóbil visão de tendas obstruindo as alamedas do Senhor. Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano. De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte sem escutar o rumor dos negócios abafando a litania dos fieis. Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens de esperança nos homens pacificados – os doces mineiros que teimam em existir no caos e no tráfico. Em vão tento a escalada. Cassetetes e revólveres me barram a subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar.

Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos, proibido viver a selvagem intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de dinheiro. Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo.

Jeremias me avisa: “Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os outeiros estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada”.
Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor”.

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