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Santa Tereza Tem Memória: Dona Lourdinha

Dona Lourdinha, o retrato de Santa Tereza, uma mulher lutadora, pronta a enfrentar os desafios com alegria e otimismo

“Nasci em uma quarta-feira de cinzas, depois de pular muito na barriga da minha mãe. Ela dizia que antes de nascer eu já pulava carnaval. O parto foi na nossa casa, Rua Formosa, 185, em Santa Tereza. E não tinha igreja ainda, sou mais velha que a igreja!” Assim Maria de Lourdes Toffani, a Dona Lourdinha, conta  rindo sobre seu nascimento, em 11 de fevereiro de 1930.

A alegre e sempre animada Dona Lourdinha, não reclama de nada, e aproveita o que vida lhe apresenta.Figura presente em todos os eventos do bairro, pode ser encontrada na igreja, missas, festas religiosas, nos trabalhos voluntários. Mas também nos bailes e nos shows na Praça, (“não perco um”, diz ela), ou nos blocos de carnaval pelas ruas de Santa Tereza. “Vou pra tudo, pra igreja ou pra farra”, fala com brilho nos olhos azuis com a certeza de quem ama a vida e sabe aproveitá-la

Saída de Santa Tereza

Em 1948, a família mudou para São Paulo. “Eu me ausentei daqui por seis anos. Meu pai pegou os oito filhos e fomos para São Paulo, onde trabalhei em um escritório de contabilidade. Mesmo não tendo feito o curso, aprendi tudo de contabilidade, na prática, com meu patrão,” conta orgulhosa.

De São Paulo a família foi para o para o Rio de Janeiro, pois segundo ela “um rapaz se apaixonou por mim e não dava sossego e eu tinha deixado aqui meu namorado, o Silas, que tinha um armazém, à Rua Salinas esquina com Itacolomito. Meu pai então decidiu mudar para evitar problemas,” ela relembra, achando graça.

Na Folia de Reis

A ida para o Rio, em 1953, combinou com seu espírito alegre. “No Rio eu aproveitei. Eu tinha um tio solteiro, que trabalhava na Confeitaria Colombo, frequentada pelos artistas. Lá conheci, sabe quem? Lamartine Babo e ficava lanchando e conversando com ele. A gente ia a bares, shows e passeava muito.  Até no enterro do cantor Francisco Alves eu fui. Era uma fila imensa para ver o rosto dele no caixão, pode? Fui porque ele era famoso e eu gostava das músicas dele. Gostava também de Carlos Galhardo e o Silas (o namorado) gostava de ouvir Augusto Calheiro,” conta de um fôlego só.

Namoro e casamento

“Antes de namorar o Silas, tive um namorico com o Gilson Ziviane. Os namoros aconteciam na Praça. Os homens em pé, parados. E a gente passava, olhando. Na Rua Itajubá, na Floresta, havia footing também. E numa dessas, meu pai me viu com o Gilson no coreto. Ele chegou e me perguntou você quer casar ou estudar? Eu escolhi estudar. Estudei no Colégio São José. Com a mudança para São Paulo, eu já trabalhando, as matrículas das escolas haviam terminado, acabei desistindo e terminei apenas o ginásio”, ela relembra.

Casamento com Silas Toffani no porão da Igreja de Santa Tereza ainda em construção

Em 1954, a família voltou para Santa Tereza. “Enquanto eu morava no Rio, o Silas construía nossa casa. Quando ficou pronta, marcamos o casamento e a família voltou para Santa Tereza. ”

O casamento foi às 14 horas, no porão da igreja, pois a parte de cima, ainda estava em construção. “Meu pai era severo e marcou o casamento para a tarde, assim a festa acabou cedo,” conta com ar contrariado.

Após o casamento, o casal foi morar em Santa Efigênia. Como era só atravessar a ponte, ela não se afastou de Santa Tereza, onde assistia à missa, visitava os pais e os sogros, que moravam à Rua Formosa.

 Ao lado de sua casa, ficava o armazém do marido, Silas Toffani. Entretanto, com o aparecimento dos grandes supermercados, dona Lourdinha conta que o movimento foi ficando fraco até que fechou.

Por essa época, a prefeitura começou o alargamento da Avenida dos Andradas e sua casa foi desapropriada. Com o dinheiro deu entrada em um apartamento em Santa Tereza, em 1977, onde vive até hoje. Nessa época um fato triste marcou sua vida. A morte do marido, logo após da mudança. “O progresso nem sempre é bom, matou meu marido. Com a desapropriação ele ficou triste, adoeceu e morreu logo depois de voltarmos para Santa Tereza,” lamenta.

Do casamento nasceram os filhos Eduardo, Rogêrio, Mônica e Simone que lhe deram 10 netos e 07 bisnestos. E ela faz questão de ressaltar que os filhos e netos foram batizados na igreja de Santa Teresa.

Histórias de Santê

Boa de prosa e de memória, ela relembra a história de Santa Tereza, por meio de fatos vividos em seus 84 anos. E começa pelo seu batizado.  “Fui batizada pelo padre Taitson, que era amigo da gente, pois ele foi colega de grupo de minha mãe, Maria de Santos Barbosa, em Conselheiro Lafaiete. Ele veio pra cá transformou uma casa, que ainda existe, na Rua Gabro, em uma capela, onde fui batizada”

E continua: “Quando a igreja estava sendo construída eu era adolescente. Eu e meus pais ajudamos muito, trabalhando nas barraquinhas para conseguir dinheiro para levantar a igreja. Era barraquinha o mês inteiro. Havia coração de Nossa Senhora, que coroei, quando criança, tudo para ajudar na construção”, conta ela.

A igreja em construção, os casamentos eram realizados no porão

Brincadeiras de criança

A vida corria tranquila em Santa Tereza na década de 30. As crianças brincavam de jogar amarelinha, pique e pular corda na rua. Também jogavam “cinco marias” com as pedrinhas “redondinhas e bonitinhas que a meninada catava”, segundo dona Lourdinha.

“A meninada da Rua Bauxita e da Formosa se juntava e ia brincar nos lotes vagos ao redor. Festa foi a construção do Estádio do Independência. A gente brincava no canteiro de obras, no domingo, quando não tinha ninguém trabalhando”,  relembra com jeitinho de que era muito bom.

Mas não era só brincadeiras. Aos nove anos, aprendeu a tricotar sapatinhos de neném e ensinou para sua mãe. As duas tricotavam e vendiam o que produziam. Ela é craque no tricô, faz roupas para bebês, xales, cachecóis.

Tricotando no evento Mercado Verde + Vivo em 2015

Acidente do bonde

“A gente não tinha muita opção, andava a pé ou de bonde, muitas vezes lotado. Até dependurada no estribo eu já andei. Mas era bom”, conta sobre como era o transporte.

Em Santa Tereza, segundo ela, o ponto final do bonde em sua adolescência era na Rua Dores do Indaiá. E um fato que a impressionou, pois não era comum na época, foi um acidente com um bonde que não conseguiu fazer a curva na esquina de Rua Salinas com Rua Pouso Alegre e tombou. “Quando passei o bonde estava lá caído. Foi de assustar,” relembra ela.

Hospital do Isolado

Dona Lourdinha conheceu de perto o Hospital do Isolado, que funcionava onde hoje está o Mercado, e recebia pacientes com doenças contagiosas.  “Minha filha Simone, com dois anos, estava com difiteria. O médico nos mandou direto para o  Isolado. Era uma escadaria e eu, grávida, subi com a menina. Não podia sair de lá, para não pegar a doença em outras pessoas. Nem comida podia vir de fora. Então, meu marido levava a comida escondido. Eu jogava um pano pela janela, ele amarrava a vasilha e eu puxava. Eu não conseguia comer a comida de lá e não podia ficar sem me alimentar.  A gente era bem tratado, mas o lugar era velho e feio. Fiquei lá três dias. Isolada mesmo.”

Hospital do Isolado (foto arquivo público) ficava onde é hoje o Mercado

Feira na Praça

Quituteira de mão cheia, para ajudar nas despesas, além do tricô, fazia salgados para festas. O movimento cresceu e precisou contratar uma equipe para ajudar. Em um fim de semana, ela disse que chegou a fazer 13 mil salgados, como empadinha, coxinha e quibe.

Quando começou a feira na Praça, às quintas-feiras ela montou uma barraca. “Era só acabar a aula no Tiradentes que a meninada chegava e acabava tudo. A feira era muito boa, tinha de tudo, o caldo vendido era famoso. Depois a feira foi para o mercado e mais tarde para a pracinha Cel. José Persilva”, relembra.

“Mas o bom mesmo era na Praça. Eu vendia quibe, bolinho de mandioca com bacalhau, empada, pastel assado e coxinha. Fiz salgado por 45 anos, hoje não quero mais nada, chega.” Mas, ela não resiste: “Se bem que estava pensando em fazer uns biscoitos de araruta, que ninguém faz igual!”, comenta.

No evento Choro na Praça

Nos eventos na Praça, seja seresta, shows de música, feiras, quadrilha, teatro, enfim, o que for, lá está ela, participando. Tanto é que durante a apresentação de Choro, promovida pelo SESC, ela foi escolhida para receber um brinde, uma viagem, pelo animador do evento, o jornalista Carlos Felipe. O brinde foi por ser a pessoa mais animada do público durante o evento, dançando com sua bengala e cantando.

 Atleticana

 Um fato que lhe dá orgulho foi entrar no Mineirão com a equipe do Atlético, em 2010. “Fui convidada para entrar junto com os jogadores. Como eu queria conhecer o Mineirão e sou atleticana, lá fui eu de mão dada com o jogador Coelho. Dei uma volta no campo, vestida com a camisa do galo”, conta orgulhosa.

Garota Propaganda

 Um lado que poucos conhecem é o trabalho classificado por ela de “Garota propaganda”. Para os mais jovens, a garota propaganda, no início da TV, era aquela moça que fazia os anúncios das lojas ou aparecia nos folhetos e revistas. É o modelo de hoje. Dona Lourdinha conta com orgulho que entre outras, fez propaganda para o  Supermercado Via Brasil e as lojas Ricardo Eletro.

Carnaval

Em 2013, quando ela caminhava pela rua, durante o carnaval, um rapaz lhe perguntou: “Está fugindo do barulho? Ela respondeu: Não, eu estou procurando onde está o barulho.” E conversa, vai conversa vem, acabou comentando que era seu aniversário. O rapaz, assim que o bloco chegou avisou à galera e seu aniversário foi comemorado com o “Parabéns pra você” em ritmo de samba, do jeitinho que ela gosta.

Dona lourdinha no bloco A Santê

“Sempre gostei de carnaval e desfilei na Unidos de Santa Tereza, quando houve o desfile a última vez na Afonso Pena. Fui de baiana, dançando no carro dos artistas. Quando eu era adolescente, papai juntava a família e a gente ia ver o carnaval no centro. Também fui a bailes de carnaval nos clubes. Quando teve a Banda Santa, é claro, eu não podia ficar de fora. Eu e minha amiga, Lúcia, pintamos o sete na Banda Santa. Depois que  acabou, não participei de blocos, relembra, com cara de saudade.

Ela diz: “agora não saio mais nos blocos, só vou pra rua ver.” Mas, na verdade, ela não fica só vendo, sempre cai na folia, como na foto de 2014, na Praça, sambando de bengala com Os Inocentes. No carnaval de 2015, foi homenageada e saiu no carro junto com o músico Gabriel Guedes e seu piano, pelas ruas do bairro, no Bloco do Godô.

E folia é com ela mesma. Quando tem Folia de Reis, lá está a Dona Lurdinha, no meio da turma. “Folia de Reis eu também gosto e não perco por nada quando tem”. O Catito, sanfoneiro, diz que “sem Dona Lourdinha e sem Catito não tem Folia de Reis em Santa Tereza”. E é verdade, sem essa figura alegre e delicada, os eventos não ficam completos, pois Dona Lurdinha é o retrato de Santa Tereza.

Fotos: Arquivo da família, Arquivo Público e Eliza Peixoto

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