Boemia de Santa Tereza - lenda ou fato - Santa Tereza Tem
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Boemia de Santa Tereza – lenda ou fato

Santa Tereza, seus bares e a fama de boêmio é tema de mestrado na Escola de Arquitetura da UFMG

“Pela simplicidade, pela maneira descomplicada e ordinária com que a vida de dá, pelo comum, Santa Tereza é um bairro que celebra a vida no cotidiano e que não passa despercebido do restante da cidade”. *(Maria Letícia Ticle)

A historiadora Maria Letícia Silva Ticle, frequentadora assídua do bairro desde criança, ao escrever sua dissertação de Mestrado escolheu como tema o Bairro de Santa Tereza, seus bares e boemia.

A dissertação “O nó entre o espaço e o tempo em Santa Tereza: os bares na paisagem boêmia em um bairro de Belo Horizonte” foi apresentada dentro do Programa de Pós Graduação em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da Escola de Arquitetura da UFMG, sob orientação da Profa. Dra. Myriam Bahia Lopes.

A tese foi defendida em 2016.

Pesquisa

Para realizar o trabalho Letícia frequentou o bairro, pesquisou o cotidiano da comunidade, frequentou os bares, assistiu à reuniões e assembleias dos moradores, como do movimento Salve Santa Tereza e da Associação de Moradores, entrevistou dezenas de pessoas e leu vários livros e reportagens em arquivos e museus.

O objetivo da pesquisa foi entender em que se baseia a característica que levou Santa Tereza ter a imagem da boêmia na atualidade. Em outra linha Letícia pesquisou em que medida a boemia pode ser um argumento pertinente para que o bairro seja considerado patrimônio cultural.

Maria Letícia Ticle, apesar de não morar em Santa Tereza, vem sempre por aqui, desde a infância com os pais almoçar no Bolão e no Temático. Na adolescência as idas ao Bar do Orlando, Parada do Cardoso, Bar do Walmir, La Crêpe. Enfim, Santa Tereza foi se tornando, segundo ela, “a estrela das minhas noites na cidade”.

Bar do Orlando

Não só essa vivência definiu o tema de seu trabalho, mas também, Letícia explica “por eu perceber por alguma coisa diferente dos bairros onde morei. Essa alguma coisa, que não sei dizer o que é, permanece mesmo depois da pesquisa. Não é o ar de interior, não é a boemia de que eu procurei no mestrado. Trata-se talvez de um cotidiano mais leve, não sei! No fundo o motivo foi por simplesmente por gostar do lugar”.

Maria Letícia fez ainda importante pesquisa fotográfica e histórica, para conseguir ambientar a questão da boemia e como ela se tornou uma característica do bairro tão divulgada nos meios de comunicação.

Para quem quiser conhecer Santa Tereza, sua história, seus bares, carnaval, características de sua gente e as lutas contra o mercado imobiliário, entres outros aspectos, vale a pena ler o trabalho da historiadora. A dissertação pode ser encontrada no link  www.bibliotecadigitaldaufmg

Boemia lenda ou fato?

“Na História é complicado falar em verdade, o que gente faz são leituras de fontes e documentos que levam à produção de diferentes narrativas. Mas pelo que pesquisei boemia é uma ideia ampla, que permite um monte de significados e interpretações. No trabalho a narrativa apresentada coloca a boemia em Santa Tereza como uma verdade”.

Em sua pesquisa, feita no período de 2013 a 2015, Maria Letícia contabilizou 74 bares no perímetro do bairro. “Hoje não sei se aumentou ou reduziu demais, mas acho que o número deve ser mais ou menos esse ainda. Ou seja, tem opção pra todo gosto e personalidade”.

Bar do Walmir

Depois de conhecer melhor o bairro, no período em que realizou a pesquisa, (2013 a 2015) , Maria Letícia comenta que “vejo Santa Tereza como uma vida que guarda certos traços de coletividade e comunidade, de interesse pelo outro, de partilha do dia a dia. Também a vontade de viver o bairro, de preservá-lo do impulso do setor imobiliário (apesar de que ele chega de um jeito ou de outro), de preservar as pessoas diante de ameaças ao bem-estar disfarçadas de progresso. Como, por exemplo, a quantidade absurda de carros nas ruas, muros, grades, elevadores e outros elementos que distanciam as pessoas umas das outras. Tenho uma visão romântica do bairro, talvez por não morar aí. E acho que nem o afastamento de pesquisadora me salvou dessa visão romântica”.

Pontos importantes no bairro na visão de Maria Letícia

O olhar de pesquisadora levou Maria Letícia a definir alguns aspectos, que ela considera importantes para a preservação das características do bairro:

O movimento Salve Santa Tereza é algo que sem ele o bairro teria outra feição hoje. Isso porque a ação desses moradores integrantes do movimento impediu o adensamento que tentou atingir o bairro várias vezes e de várias formas. Sem essas conquistas, que os moradores tanto valorizam, como o contato da vizinhança, o pessoal na praça, essas coisas não iriam existir mais.

  • O bairro tem um equipamento cultural muito bacana, que é o MIS Cine Santa Tereza. Essa é uma conquista, em que o cinema oferece uma programação cultural pertinho de casa.
    -Mais um ponto de extrema importância: não dá pra tirar o olho do Mercado Distrital, porque ele é um bem valioso pro bairro e pra cidade, tem que proteger mesmo, como os moradores têm feito há anos.
MIS Cine Santa Tereza importante equipamento cultural
  • Outro ponto fundamental é que a proteção, pelo fato do bairro ser patrimônio histórico não congela o lugar. Dá pra crescer, pra se descobrir e se reinventar e ainda ter uma vida muito boa, mantendo pontos chaves do bairro, como as casas, ruas de pé de moleque, esse tanto de praça. O que acontece é uma resistência diante da perversidade da cidade.

Trechos da Dissertação

Estão aqui apresentadas, portanto, a história do bairro, a discussão da noção de boemia e seu significado em Santa Tereza. Foram articuladas as ideias de boemia e patrimônio e à discussão de paisagem e gentrificação, apontando riscos e potencialidades. A dissertação é fruto de pesquisa bibliográfica e levantamento documental em arquivos institucionais e pessoais na cidade de Belo Horizonte, e ainda de fontes produzidas por meio de entrevistas, conversas e observação participante.

A crescente densificação da área construída e o aumento populacional podem ser considerados responsáveis por algumas consequências diretas para o bairro, como a intensificação do tráfego de veículos e circulação de pessoas. Seus dois novos acessos alteraram significativamente, embora não de maneira definitiva, a paisagem do bairro – seu relativo isolamento geográfico, uma das particularidades do Santa Teve princípio, então, um processo de mudanças, ora sutis, ora fortemente perceptíveis, da paisagem do bairro Santa Tereza – sons e imagens característicos, usos tradicionais de espaços, práticas cotidianas e relações entre moradores, ritmo e velocidade da vida foram sendo modificados. (Pag. 50)

A Praça Duque de Caxias assumiu, ao longo das décadas, papel de indiscutível centralidade no bairro, por ser ponto de encontro, espontâneo ou combinado, entre os moradores; por abrigar instância de poder sociais, tanto simbólico (Igreja) quanto oficial (Polícia Militar); por reunir no seu entorno considerável parcela do comércio do bairro, inclusive um dos bares mais preponderantes na história da boemia de Santa Tereza, o Bar e Restaurante Bolão, o Rei do Espaguete. (Pag. 51)

Praça Duque de Caxias, ponto de encontro e lazer

Desde a década de 1920, antes ainda do reconhecimento como bairro, os encontros dos moradores em saraus nas casas de famílias eram frequentes, bem como os bailes entre os jovens, as reuniões teatrais e discussões artísticas. Em 1929 foi fundado pelo já falecido Sr. Manoel Teixeira o Clube Recreativo Santa Tereza, o primeiro do bairro (FROTA et al, 1990)83. Eram realizados ensaios, peças amadoras, promovidos bailes de carnaval, reuniões intelectuais e palestras em um local especificamente designado para tais atividades na Rua Norita, 32. Este clube funcionou por seis anos e o Sr. Manoel, junto com alguns amigos, fundou outro clube em 1947, o Clube Ideal de teatro amador. (Pag. 75)

Teatro Ideal

Além do teatro e do carnaval, o lado cultural de Santa Tereza tem outra vertente muito conhecida. Na década de 1960, despontou o movimento musical “Clube da Esquina”, de grande repercussão nacional e internacional. Luiz Henrique Assis Garcia analisa a fala de Lô Borges, um de seus integrantes, acerca do Clube da Esquina, de Santa Tereza e da relação entre ambos como referência de cultura e sociabilidade. (Pag 77)

Apesar de afirmar que a tradição de bares e restaurantes é bem antiga em Santa Tereza, desde os tempos da colônia agrícola, devemos ter cautela ao reproduzir o discurso de que a imagem de boemia no bairro existe desde seus primórdios. A pesquisa documental demonstrou que o epíteto de bairro boêmio começou a ser difundido na década de 1970 nos jornais em circulação na cidade e não estava relacionado diretamente aos bares, mas antes à seresta. (Pag. 82).

www.bibliotecadigitaldaufmg

*(Maria Letícia Ticle) 
Historiadora no Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) – Gerência de Patrimônio Material / Diretoria de Proteção e Memória. Professora voluntária do Departamento de Análise Crítica e Histórica da Arquitetura (ACR) da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (MACPS-EA/UFMG) e integrante do grupo de pesquisa “Cosmopolita” do Departamento de Análise Crítica e Histórica da Arquitetura.

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